16 novembro, 2008

[:] EU LEONARDO

Rubem Alves

Minhas habilidades técnicas não são das piores. Eu mesmo, com serra, furadeiras e parafusos, construí as estantes do meu escritório. E até que elas me agradam quando vistas de longe. O importante é não examinar os detalhes, pois me falha a fineza artesanal. De vez em quando, conserto uma fechadura enguiçada e consegui mesmo reconstruir uma torradeira elétrica que havia se espatifado no chão.

Minha inclinação para lidar com a construção e reconstrução de coisas se manifestou pela primeira vez quando eu tinha sete anos de idade, ocasião em que desmontei o relógio velho de minha mãe, para ver como ele era feito. Evidentemente, com a intenção de montá-lo de novo. Infelizmente, esta segunda parte da minha experiência em mecânica não pôde ser realizada, pois eu me esqueci da ordem em que as peças deviam ser ajuntadas. Meus pais, ao invés de ficarem bravos, ficaram orgulhosos, pois viram no meu ato uma inegável vocação para a engenharia.

Minha competência para a matemática, se revelou logo no curso primário, confirmou este diagnóstico, e ninguém duvidava, nem mesmo eu, que o meu futuro era de ser de um brilhante engenheiro. Mas a vida nos conduz por caminhos não previstos, e, ao invés de desenvolver minha competência na direção da técnica, acabei por me meter numa área totalmente diferente, onde a coisa mais impossível de se fazer é um artefato técnico. Do ponto de vista da técnica sou totalmente inútil e incompetente – o que me condenou à posição marginal de alguém incapaz de realizar as coisas que fazem a glória e a riqueza do nosso mundo. Minha ignorância das coisas da tecnologia avançada – como este computador em que escrevo esta crônica – é absoluta, e os princípios que tornaram possível a sua fabricação me são um mistério sem tamanho. Quero, portanto, deixar manifesta a minha admiração – mais do que isto, a minha inveja, daqueles que são os mago-construtores deste mundo tecnológico em que vivemos.

Se eu tivesse entrado pelos caminhos da tecnologia, um lugar onde eu gostaria de trabalhar é na IBM. Porque, se não estou equivocado, a IBM é uma das mais altas e perfeitas manifestações do espírito tecnológico, na sua maior pureza. Tudo o que ela faz é (quase) perfeito. Digo “quase” porque, paradoxalmente, perfeição tecnológica só pode existir no campo do pensamento puro. As coisas produzidas, por maior que seja o controle de qualidade, têm sempre imperfeições. Os aviões caem. Os computadores são infestados por vírus. Os metais se rompem de “fadiga”. Para nós, “quase perfeito” já está muito bom. Mas a IBM me surpreendeu quando descobri que ela também está interessada na beleza. Gastou o seu dinheiro para produzir um dos vídeos mais lindos que eu já vi, comovente e inspirador sobre a vida de Leonardo da Vinci, um dos maiores gênios da história da humanidade.

Eu, Leonardo... Mente inquieta, incontrolável, indomável, dominada pelo fascínio do mundo – seus olhos e seu pensamento não conseguiam descansar ante os infinitos objetos do mundo, existentes e por existir. Julgava a pintura a suprema das artes, pois através dela podia captar visualmente a harmonia da natureza, construída segundo os princípios da matemática. Estudou anatomia, para entender os princípios mecânicos, segundo os quais o corpo humano – esta máquina perfeita – era construída. Músico, fazia seus próprios instrumentos. Compunha, tocava e improvisava os poemas que cantava. Arquiteto, fez planos para uma cidade ideal, em que as casas fossem construídas segundo o princípio da beleza, banhadas de luz, e em que houvesse vias especiais para os pedestres e outras para os veículos. Imaginava máquinas.

O seu pensamento voava tão longe que a tecnologia existente não era capaz de produzir aquilo que ele imaginava – e, por isto, elas permaneceram apenas como projetos, no papel. Estudou o vôo dos pássaros, a fim de construir uma máquina que desse aos homens o poder de voar. Sonhou com navios que navegassem por baixo das águas, como os peixes. Observava o tempo e os seus sinais para compreender os princípios da meteorologia. Estudava a água, que acreditava ser o princípio vital do universo. Observava os fósseis e concluiu que em passados remotos o cume das montanhas havia estado submerso nas águas.Fascinava-se com cavalos, para ele, os mais belos animais, depois dos homens, e fez estudos sobre a sua estética.

O que era Leonardo? Pintor, músico, arquiteto, poeta, engenheiro, geólogo, biólogo? Todas estas coisas. Dentro do seu corpo vivia um universo. Homem universal, ele foi a encarnação, num único corpo, do ideal da Universidade, como o lugar onde os homens se reúnem para, dando asas à imaginação, encontrar o deleite na visão, compreensão e harmonia do mundo.

Foi então que me veio uma idéia maluca: se o Leonardo da Vinci tivesse vivo hoje, será que ele conseguiria um emprego na IBM? Para começar, o seu currículum vitae provocaria suspeitas. Um homem com interesses que vão da estética dos cavalos à construção de máquinas voadoras não parece regular bem. Mas, suponhamos que ele conseguisse o emprego. Imagino uma situação prática: o seu chefe lhe pede um relatório sobre um projeto de pesquisa e ele responde que no momento não é possível porque está se dedicando a um projeto estético pelo qual se apaixonou – a pintura de um quadro. É. Acho que Leonardo da Vinci não teria vida longa como funcionário da IBM, nem como professor de uma de nossas universidades. Espero que meus amigos da IBM me entendam. Que não tomem isto como nada de pessoal. A relação é puramente acidental. Primeiro, porque foi ela que fez o maravilhoso vídeo do Leonardo. Segundo, porque eu, de fato, acredito que a IBM representa o que há de mais alto no mundo técnico. Uso a IBM como metáfora e representante da lógica de produção organizacional da tecnologia, que pode ser assim resumida: “organizações de produção de tecnologia não toleram Leonardos.” Controle de qualidade ficou sendo uma expressão da moda. O que ela significa é muito simples: há de haver mecanismos que garantam que o produto final desejado esteja o mais próximo possível da perfeição com que ele foi idealizado. É isto, por exemplo. Que se espera de um bom restaurante: que o prato servido corresponda ao prato que é prometido. No campo tecnológico, o produto final tem de corresponder às especificações, tais como saíram da cabeça dos engenheiros que o pensaram.

É somente assim que se garante qualidade uniforme e confiável aos produtos.
Acontece, entretanto, que a parte mais importante deste processo não é o controle de qualidade dos produtos, mas o controle de qualidade do pensamento. É do pensamento que nascem os produtos. O mundo começa, não na máquina, mas na inteligência. Por isso, ao lado de mecanismos de controle técnico, as organizações, de há muito, aprenderam que é preciso controlar o pensamento. No seu fascinante livro O Homem-Organização, Willian H. W. Jr.

Descreve tal processo como a domesticação do gênio. O cientista deve abandonar a sua imaginação divagante que o leva a andar pelos caminhos do seu próprio fascínio e tornar-se uma função dos objetivos determinados pelos interesses da instituição que o emprega. Deve ser um “company cônscios".

Se o que a companhia deseja é a produção de tomates enlatados, o seu pensamento deve pensar tomates enlatados o tempo todo. Gastar tempo pensando em música, jardinagem, política, ecologia, é uma doença a ser evitada a todo custo, em benefício do controle de qualidade do pensamento. Em outras palavras: controle de qualidade do pensamento é cortar as asas da imaginação a fim de que ele marche ao ritmo dos tambores institucionais. O pensamento se tornará excelente ao preço de se perder a sua liberdade. Isto vale para a IBM e para todas as instituições de excelência tecnológica. Inclusive – e principalmente – as universidades. Quanto a Leonardo da Vinci, coitado, deverá se contentar em ficar desempregado.

Retirado do livro: A Alegria de Ensinar

15 novembro, 2008

[:] EDUCAÇÃO? EDUCAÇÕES. APRENDER COM O ÍNDIO


Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é a coragem minha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.
João Guimarães Rosa / Grande Sertão: Veredas


Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação ? Educações. E já que pelo menos por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a vida, por que não começar a pensar sobre ela com o que uns índios uma vez escreveram ?

Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:


"... Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração.
Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.... Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens."


De tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante.

Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado, com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas.

Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos.

A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar - às vezes a ocultar, às vezes a inculcar - de geração em geração, a necessidade da existência de sua ordem.

Por isso mesmo - e os índios sabiam - a educação do colonizador, que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura.

Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é a sua força.

No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação - nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa - interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta é a sua fraqueza.

Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A Educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua missão e transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros: "... e deles faremos homens". Mas, na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "... eles eram, portanto, totalmente inúteis"

Retirado do Livro: O que é Educação? 
Autor: BRANDÃO, Carlos Rodrigues